“Estamos perdidos!”, exclamou Harry, meu jovem assistente. Cansaço, frustração e o que eu só posso interpretar como um gemido causado por dor muscular eram todos audíveis em sua voz.
Eu o ignorei e continuei tentando navegar pelo terreno pantanoso, lama a poucos centímetros de alcançar nossos joelhos e o terrível frio daquela época do ano não facilitaram nossa jornada, mas eu estava preparada para isso.
“Srta. Purinna, por favor, você sabe a quanto tempo estamos procurando?”, meu assistente indagou, expressando seu descontentamento na sua tonalidade.
“Uuhhh… duas semanas?”. Eu não tinha certeza do tempo exato, mas a aquisição das evidências que levaram a essa expedição parecia tão recente. Com certeza não poderia ser muito mais do qu-
“Dois meses, Srta. Purinna. Estamos procurando por suas desilusões sobre lagartixas cuspidoras de fogo nos pântanos lamacentos dessa maldita ilha a dois meses!”. Harry prontamente interrompeu meus pensamentos, insultou minha pesquisa e a minha terra natal, tudo com um único comentário.
Eu parei, enrolei o mapa que estava em minhas mãos e o pus em seu devido compartimento em meu cinto. Virei para trás olhando bem nos olhos dele sem dizer uma única palavra.
“O-ok, talvez eu tenha sido rude em minha colocação, porém isso não muda qu-”
“Cala a boca”, eu o interrompi; “Ainda temos muito caminho pela frente”.
Eu me virei para frente novamente e voltei a caminhar, hora pisando no lodo, outrora na turfa, em ambos os casos meus pés afundando bem mais do que eu gostaria.
Ambos andamos calados por algum tempo. Instantes de silêncio pareciam horas de ensurdecedor ruído. Eu decidi quebrar o silêncio.
“Harry…”
“Sim?”
“Você lembra por que eu te contratei?”
“Porque você precisava de um assistente?”
“Isso é óbvio, idiota. Me refiro a porquê você”
“Porque eu era quem cobrava menos?”
“Não”, eu rapidamente respondi, quase que o interrompendo; “Quer dizer, sim, mas não é tão simples!”
Eu não estava olhando para ele no momento, mas podia sentir o olhar confuso dele. Eu prossegui.
“Eu te contratei pois você foi o único que não me ridicularizou pela minha pesquisa… não a chamou de “contos de fadas” ou…”
“Ou de desilusões…”, ele complementou. Suas palavras propagando com certa dificuldade, como se carregassem algum peso. Talvez culpa ou arrependimento, talvez algum tipo de vergonha.
Eu arranquei de volta o mapa que repousava no compartimento de couro na minha cintura, procurando exatamente onde estávamos.
“Harry…”, eu hesitei, interrompendo meu caminhar novamente.
“O que foi?”
“...”
“Estamos perdidos, não é?”
“Aham…”
“Ótimo”, o ruivo exclamou logo após um longo suspiro; “está ficando tarde, deveríamos montar acampamento…”. Ele olhou em volta por alguns segundos, cerrando os olhos por trás das lentes redondas do seu óculos; “...ali”, ele apontou para um monte a alguns metros noroeste de onde estávamos, com uma área que parecia plana o bastante para nossas tendas. “Quatro anos de Geologia pra isso…”, Harry murmurou.
Começamos a montar nosso acampamento; montamos nossas tendas, e retiramos das mochilas os galhos e folhas secas que havíamos separado previamente e começamos a montar nossa fogueira.
“Pederneira”, eu disse estendendo a minha mão tremulando na direção de Harry. Ele, com as mãos já na mochila, começou a revirá-la, lentamente transformando sua feição de apenas frio em frio e preocupação, depois desespero e por fim medo – provavelmente do que eu faria com ele quando percebesse o quanto ele demorava para me entregar a maldita pederneira –
“Uhh… Srta. Purinna…”, ele hesitantemente murmurou, tremendo em parte pelo frio, em parte pela realização de que se o frio não o matasse, eu mesma o faria.
“A mochila”, eu mantive minha mão estendida para que ele a entregasse. Comecei a eu mesma – futilmente – procurar a pederneira, com a esperança de que meu assistente fosse apenas incompetente o bastante para não achar um objeto em uma mochila cheia, mas não para perder uma ferramenta essencial para a nossa sobrevivência no inverno úmido de Gales. Minha busca foi tão bem sucedida quanto a dele.
Eu apenas parei de procurar, pus a mochila no chão ao meu lado e, derrotada, comecei a encarar as estrelas recém acendidas no céu, a tão pouco libertas do subjugo ofuscante do Sol recém posto no horizonte.
Harry começou a procurar por alguma coisa no chão, alternando seu olhar entre o solo – em busca de seja lá o que ele estava atrás – e eu – creio que para ter certeza de que eu não iria surtar enquanto ele não estivesse olhando –, ele eventualmente soltou um “aha!” e se agachou para pegar algo; uma pedra. “Agora só falta a outra”.
Eu olhei para o seixo em sua mão; duvidava que ele pudesse usar aquilo, visto o quão úmido o ar estava e aquela pedra estava no chão molhado de uma turfeira. Era possível até ver o musgo e o líquen crescendo na superfície dela.
“Você tem certeza que isso aí vai…”
“Aqui”, eu fui interrompida por ele encontrando outra – igualmente inútil – pedra. Não tenho certeza se foi o desespero, o frio, o sono, a fome ou alguma combinação desses fatores, mas ele começou a bater as pedras uma na outra, acreditando que aquilo ia funcionar.
Tek! Um impacto. Nada aconteceu.
Tek! Ainda nada
Tek! Tek! Tek!…
Ele continuou. Eu não sabia se admirava ou desprezava sua insistência. O frio pouco a pouco nos vencendo; eu nem percebia o quanto era consumida, focada demais em como os movimentos do Harry gradativamente se tornavam mais e mais lentos. Meus olhos de repente ficaram pesados; eu pingava por cada centímetro da minha pele, mas não era suor, e sim a umidade do ar se condensando; meus dedos perdendo seu movimento e minhas pálpebras fechando indicavam que talvez esse fosse o último dia da minha expedição.
“S-s-s-srta. P-p-purinna?”, eu ouvi fracamente, distante.
“Est-t-tá tu-tudo bem, H-harry”, eu o respondi, “É-é s-só um c-c-cochilo”.
Enquanto minha consciência desvanecia, eu, por algum motivo, não me sentia irritada pelos erros do Quatro Olhos ou frustrada pelo fim da minha jornada. Talvez fosse o frio desligando minhas funções, ou talvez seja o contentamento de que eu sei a verdade. De qualquer forma, eu não sabia se aquele era realmente o fim, mas não importava. Só importava qu-
“Boa noite”
“AAAHH!!”, Eu e Harry gritamos juntos enquanto levantamos; meus olhos forçadamente abertos de novo pelo súbito pico da adrenalina. Eu imediatamente puxei meu facão e Harry sua Colt 1848, ambos apontando nossas armas na direção da voz.
O dono da voz era uma figura alta; era difícil de distinguir quaisquer características importantes naquele breu, mas pela silhueta era possível ver que seu cabelo era curto. mesmo naquele escuro era possível ver uma única íris amarela refletindo o pouco de luz daquele ambiente.
“Eu posso… tentar?” A figura disse, estendendo seu braço, apontando na direção das pedras que Harry derrubou no chão durante o susto. Ele possuía um sotaque estranho, como um meio termo entre um Escocês e um Russo; não soava como nenhum dialeto que eu já tinha ouvido.
“C-claro, p-por que não confiar na figura estranha que apareceu repentinamente por d-detrás de nossas costas?”, Harry se pôs na frente das pedras, como uma galinha protegendo seus ovos.
“Deixa ele tentar”, eu ordenei.
“M-mas Srta. Purinna-”
“O que? O que ele vai fazer? Pegar as pedras e sair correndo? Até por que elas estão sendo muito úteis pra gente agora, né”
Harry se calou e abriu caminho para que o homem calmamente andasse na direção das pedras. Ele se agachou, pegou uma em cada mão e;
Tek! Um impacto. Um impacto se tornou uma faísca. Uma faísca se tornou uma fogueira.
Uma fogueira significava que íamos viver naquela noite, e que eu tinha mais uma chance de mostrar a verdade para o mundo.
Eu e Harry imediatamente corremos em direção ao fogo como mariposas voando em direção a uma fonte de luz, soltando nossas armas e estendendo as palmas de nossas mãos, sentindo novamente a mobilidade dos nossos dedos. Naquele momento eu senti uma certa claridade, como se algo que estava sendo bloqueado finalmente tivesse tido a chance de emergir.
“Seu idiota!!”, eu gritei na direção de Harry, “Como que você perde a nossa pederneira!!”.
“Eu!? Como tem tanta certeza de que não foi você que a perdeu na noite passada?”
“Por que eu não faria uma burrice dessas”, eu, logicamente, respondi.
“Ah sim, igual aquela vez em que você não perdeu a nossa bússola, ou a vez que nós não nos perdemos com o mapa em suas mãos, ou a vez que…”, Harry parou, percebendo que estava fazendo algo de errado. Eu esperava que ele tivesse percebido que não deveria estar falando comigo daquela forma, mas minhas esperanças foram rapidamente destruídas.
“Oh, céus, onde estão meus modos?”, Harry se virou na direção do homem, agora iluminado pelas chamas; seu cabelo era ruivo, mas não como o de Harry; era mais laranja do que o vermelho vibrante do Quatro Olhos. Seu rosto era longo e sua pele era como o cobre. Olheiras debaixo de seus olhos e uma enorme cicatriz que nascia de sua testa e chegava até a mandíbula, atravessando seu olho esquerdo, aparentemente cego.
“Meu nome é Harry Larsen”, ele estendeu sua mão na direção do homem.
“Thymor”, ele respondeu, apertando sua mão, “Thymor Asther”
“Muito obrigado Sr. Asther”
“Ei! Não aja como se você não estivesse no meio de uma discussão comigo!”, eu interrompi, logo percebendo que – por mais que eu odeie admitir – ele estava certo.
“Mas… Sim, ele tem razão, muito obrigada”, eu humildemente respondi.
“De… nada”, ele respondeu de forma desajeitada. “Tudo bem se eu… ficar aqui?”
O acampamento foi tomado pelo silêncio, olhares voando entre mim e Harry como utensílios de cozinha em uma briga de casal. Os sons dos gafanhotos e sapos realçavam o silêncio ensurdecedor.
“N-nossa comida não dá pra três pessoas e…”, Harry explicou com certa vergonha. “...E nós só temos duas tendas”, eu completei.
“Tudo bem”, Thymor se aproximou da fogueira, sentando-se do lado oposto ao que nós dois estávamos. “Não exijo sua comida nem seu abrigo”
“Ooook… Já me parece uma companhia de viagem melhor que o småbög aqui”, eu brinquei cutucando o braço de Harry com o cotovelo.
“Dra åt helvete”, Harry respondeu em sua língua nativa.
Nós começamos a retirar nossos suprimentos das mochilas; rações, água, o eventual doce perdido no meio da mochila. Eu trouxe uma chaleira e ervas para pelo menos uns 5 tipos diferentes de chá, enquanto Harry trouxe seu precioso pó de café brasileiro que, de acordo com ele, o ajuda a dormir.
Durante todo esse período Thymor se manteve completamente calado, encarando as chamas da fogueira como um atirador de elite focado em seu alvo.
“Então, Thymor… De onde você veio?”, eu indaguei.
“Do norte”, ele respondeu, sem tirar seus olhos da fogueira.
“Tipo… Da Escócia?”
“É… tipo da Escócia”. Inicialmente eu cada vez mais eu cogitava que talvez tivesse sido uma má ideia deixar ele ficar com a gente. Depois eu pensei que talvez tenha sido uma ótima ideia – vai saber o que esse cara ia fazer com a gente se tivéssemos recusado sua companhia. Eu não estava com medo; ambos estávamos armados e, na minha experiência, se tem algo pro qual o Harry não é um completo incompetente, é atirando.
“Bem, eu acho que ainda não me apresentei. Meu nome é Olivia Purinna”
“Por que vocês estão aqui? Essas partes são perigosas”
“Estamos em uma expedição, indo em direção a uma cordilheira de montanhas ao noroeste daqui em busca de..”
“A gente tá atrás de Drag-”, eu imediatamente interrompi Harry com um pisão no pé dele. “AAI!”
“Dragões?”, ele indagou, dessa vez olhando diretamente em meus olhos. O terrível sentimento de insegurança que eu não sentia a meses emergiu como uma bola de futebol cheia, se recusando a ficar no fundo de uma piscina.
“Eu sei… soa estúpido”, Eu admiti. “mas eu tenho evidências de que-”
“Você já viu um dragão?”, Ele me interrompeu.
“Ei, você também não precisa debochar da pesquisa da Srta. Purinna, ok?!”, Harry disse enquanto se levantava abruptamente, derramando um pouco do seu café.
“Eu não estou”, Thymor o respondeu logo antes de mudar seu foco de volta para mim. O terrível sentimento de repente desvaneceu. “Na verdade já”, eu respondi. Ele ajeitou sua postura, parecia interessado no que eu tinha a dizer.
“Foi a 15 anos atrás. Eu havia me perdido em um bosque perto da minha casa. Eu estava chorando, gritando por meus pais quando… ele apareceu. Eu lembro de forma tão vívida… Do tamanho de um cavalo grande, ele tinha um par de pernas, um par de asas, um par de chifres. Estranhamente, penas cobriam a maior parte do seu corpo, com escamas limitadas às suas pernas, como uma ave.
Ele içou voo, sobrevoou a área e depois me encontrou em meio às árvores de novo e… me guiou de volta para casa. Eu venho os procurando desde então”
“E o que você pretende fazer quando encontrá-los?”, Thymor indagou
“Eu pretendo compreendê-los. Talvez encontrar o dragão que me ajudou”
Thymor desviou seu olhar para Harry, que havia começado a se encaminhar para sua tenda. “Ele não parece impressionado”
“Ela já me contou essa história antes”
“E você acredita que seja verdade?”
“Não totalmente. Mas nunca se sabe”
“Que palavras encorajadoras”, eu respondi em tom de ironia.
“Boa noite”, Harry respondeu fechando o ziper da tenda.
“Boa noite, Quatro Olhos” eu respondi a ele, logo me virando para Thymor. “Eu acho melhor eu ir também. Você tem certeza de que vai ficar bem aqui fora?”
“Tenho”
“Tá bom… Boa Noite” Eu entrei na minha tenda, a fechei e fui dormir.
“ Swythaw̆n săy̆gon̆ …”
Pássaros cantando, o aroma no ar indicando que choveu enquanto dormíamos. Eu saio da minha tenda e me deparo com Harry já tomando seu café, sua tenda já desmontada e nem sinal da presença de Thymor.
“Bom dia, Bela Adormecida”
“Bom dia, Quatro Olhos”. Eu me aproximei, sentando em frente à fogueira, ainda acesa, peguei minha xícara e a estendi para Harry. Ele pôs o café.
“A srta. estava errada”, Harry disse, com nosso mapa em mãos. “Nosso destino fica a sudoeste daqui. Nosso amigo da noite passada fez o favor de nos localizar no mapa”
“Me dá isso aqui!”. Eu arranquei o mapa das mãos dele, vendo um pequeno desenho com duas figuras de palito e uma fogueira no centro. Um X demarcava as montanhas para onde estávamos indo.
“Parece que vocês conversaram bastante enquanto eu dormia”
“Não não, ele já tinha ido quando eu acordei. Ele até reacendeu a fogueira depois da chuva, aparentemente”
“Ué? Então como ele sabe das montanhas pra onde estamos indo?”
“Vocês… não conversaram sobre isso depois que eu fui dormir?”
“Não…”. Nós nos encaramos por um momento, nossos olhos gradualmente se arregalando enquanto a ficha caía. Sem dizer uma única palavra, ambos sabíamos o que se passava na cabeça do outro.
“Temos que ir”, eu disse, me apressando para tomar o meu café. Terminamos de comer o mais rápido que podíamos e desmontamos minha tenda. Harry pegou o nosso odre e jogou a água na fogueira; o fogo parecia não apagar.
“Uuuhh… Srta. Purinna”
“É, talvez ele tenha ido embora mais cedo do que imaginamos. Bora, não gasta nossa água toda nisso, e pega as pedras” . Harry pegou as pedras, completamente secas, e sem sinal algum do musgo e do líquen que antes cobriam suas superfícies.
“Elas estão quentes”. Harry apontou, as pondo na mochila.
“Aqui”. Eu bati o mapa no peito dele. “Você fica com o mapa”
Ele segurou o pedaço de papel, olhou em volta por alguns instantes, “Pra lá”, ele apontou para sudoeste e começou a andar. Eu o segui.
Alguns minutos de silêncio caminhando se tornaram algumas horas. Adentramos uma Taiga no meio do caminho. Era difícil de navegar, constantemente precisando contornar árvores, pedras, e até um rio.
Em dado momento eu vi uma pedra. Não era qualquer pedra, eu tinha certeza de que eu já tinha visto aquela pedra. “Estamos perdidos de novo”
“Claro que não, só precisamos-”
“Harry, a gente já passou por essa pedra, estamos andando em círculos!”. Eu gritei, apontando para o que, obviamente, era a mesma pedra.
“N-não, não pode ser… Eu lembraria de uma rocha de Diorito tão grande”, ele disse, tentando usar sua suposta autoridade para se safar, tentando me convencer de que eu era a louca da história.
“Harry, eu preciso que você leia esse mapa direito!”
“Seria mais fácil com uma Bússola”
“Seria mais fácil se o meu assistente não fosse tão incompetente”. Harry parou de andar. Ele ficou em silêncio por alguns instantes e soltou um forte bufo.
“Ah, claro, porque você é a Senhora Leitora de Mapas, não é? Nós definitivamente não estávamos perdidos antes de um estranho salvar sua vida! Não foi você que começou a morrer por causa de um friozinho de talvez quinze graus negativos, e ainda tem a audácia de chamar-me de småbög!”
“Nós finalmente, depois de todo esse tempo, temos uma pista concreta! Eu esperava que depois de-”
“Evidência concreta? Encontramos um homem estranho que nos ajudou e desapareceu! Isso não quer dizer nada!”
“Como ele saberia do nosso destino final?”
“Ele poderia estar nos seguindo, nos ouviu falando sobre de manhã”
“Claro, ele estava nos seguindo escondido, mas decidiu se revelar mesmo assim por motivos! Além do mais, a fogueira?? Como você explica aquilo?”
“Ah sim, ele acendeu uma fogueira! Com toda absoluta certeza isso é magia dracônica. Só pode ser!”. O deboche de Harry estava começando a me dar nos nervos. Ele continuou.
“Ele acendeu a fogueira por que qualquer geólogo minimamente competente teria sido capaz de olhar para…”, Ele pegou as pedras do bolso lateral de sua mochila. “...Isso aqui e saber que essas rochas servem para acender uma fogueira!”, ele exclamou, estendendo suas mãos na minha direção, quase que esfregando as pedras no meu rosto.
“Se não fosse por mim e pelos meus conhecimentos e minhas competências, você estaria morta!”, o volume de sua voz se elevava a cada fonema que ele articulava, cada aproximante beirando uma fricativa, cada fricativa beirando uma plosiva e cada plosiva beirando uma oclusiva. Aves começaram a voar das árvores em volta de nós, espantadas pelo barulho.
“Por isso, Olivia, eu acho que você deveria começar a tratar-me com o mínimo de respeito ou ir atrás de outro assistente para lhe ajudar com seus contos de fadas! E digo mais! Eu acho q-”
“Cala a boca”
“Não! Isso não vai mais-”
“Harry. Cala. A boca”. Eu disse segurando sua cabeça por cima e virando seu pescoço. Atrás dele uma fera enorme, mas não a que estávamos procurando; possivelmente perturbada pela nossa discussão.
Um urso, a julgar pelo imediato e agressivo grunhido assim que Harry notou sua presença, provavelmente uma mãe protegendo seus filhotes, achando que nós somos uma ameaça.
Eu me joguei no chão imediatamente, tentando me fingir de morta. Quando eu olhei pro Quatro Olhos, por outro lado, o vi paralizado.
“Ei! Pro chão!”, eu futilmente sussurrei. Harry permaneceu imóvel, mantendo contato visual direto com a bola de pelos e visivelmente trêmulo, principalmente suas mãos e joelhos. A ursa começou a caminhar na direção dele. Eu sabia que precisava fazer alguma coisa, ou o urso iria transformar meu assistente em dois. Ela chegou perto o bastante para Harry sentir o calor da respiração dela; eu não tinha mais tempo. Eu me levantei abruptamente, correndo na direção de onde ela veio, imaginando que é para onde os filhos dela estavam.
“Aqui!! Eu vou matar os seus filhos, bola de pelo!!”, eu gritei, tentando chamar a atenção dela enquanto me enfurnava entre as árvores, usando o facão para abrir caminho. Sem olhar para trás eu ouvi um rugido e sons de patas se chocando contra o solo macio e amassando as folhas secas.
Eu continuei correndo; eu sabia que jamais poderia ser tão rápida quanto um urso, mas poderia passar por entre árvores e espaços que a gigantesca não conseguiria; isso foi o bastante para atrasá-la, mas não o suficiente. Eu ouvi o som de um disparo; definitivamente era a arma de Harry. Estaria ele tentando me ajudar atirando no urso? Se sim, teria sido a primeira vez que eu o vi errar um tiro, pois ela continuava a todo vapor, avançando e pisoteando as folhas secas e musgos.
O frio começou a me pegar de novo, enrijecendo meus movimentos; o ar parecia resistente às minhas inspirações; o meu coração batia como se minha vida dependesse disso – até por que, ela dependia –.
Eu me vi em uma clareira; não haviam obstáculos para para atrasar a fera. Eu comecei a me virar para dar a volta pela clareira, mas lá estava ela, bem atrás de mim.
Eu comecei a lentamente andar para trás, adentrando a clareira, enquanto a ursa se aproximava no mesmo passo, quase como se quisesse brincar comigo antes de me exterminar.
Eu me vi naquele lugar novamente; naquele bosque todos aqueles anos atrás. Me vi chorando, perdida, com medo. Me vi incapaz de aceitar que aquele era o meu fim, mesmo sabendo que era.
Eu me vi tendo novamente a mesma esperança infantil, de que um milagre viria para me salvar.
Eu ouvi um rugido e, por um breve momento, menor do que um segundo, eu soube que era o fim, que eu havia falhado. Falhado como pesquisadora, falhado como chefe. Falhado com a minha família, com meu assistente. Falhado comigo mesma; com tudo aquilo que eu havia prometido para aquela menininha de dez anos, logo após ser levada de volta para casa.
Porém… Algo não batia. No breve momento logo após esse eu senti que algo estava errado. Eu não sentia frio, mas um calor aconchegante. As direções pareciam embaralhadas, o grunhido da besta que estava em frente a mim parecia vir das minhas costas.
Em um terceiro breve momento eu vi a ursa completamente parada. Vi em seus olhos o mesmo sentimento que Harry tinha quando a viu. Em minha visão periférica um brilho laranja intenso.
Eu finalmente movi meu pescoço e vi que a clareira estava rodeada por chamas.
“Precisa de ajuda, Srta. Purinna?”. Aquela voz irritante, nunca antes carregando tanta esperança, vindo não de trás de mim, mas de cima. Foi quando, antes mesmo de eu ser capaz de me virar para olhar para a fuça do amante de pedras, eu senti o vento vindo de trás de mim, como um helicóptero pousando, forte o bastante para apagar o fogo. Foi quando eu vi a criatura carregando Harry em suas costas.
Bem maior que um cavalo grande, ele ostentava não apenas um tamanho mais de 5m de altura, como duas enormes asas que usava como patas dianteiras em seu caminhar, um par de chifres e penas castanhas cobrindo a maior parte seu corpo; as penas de seu pescoço iridescentes, refletindo tons de azul, roxo e verde.
Comigo ainda maravilhada com o vislumbrar daquilo que eu achei que jamais veria novamente, Harry desceu do – e eu nem acredito que eu estou dizendo isso – dragão e veio me examinar.
“Você está bem?”, Harry perguntou, com desespero em sua voz.
“Estou…”, eu disse, ainda com os olhos travados no dragão. “Como você me achou e… como achou ele?”
“Eu tentei seguir o mapa. Achei que sua melhor esperança era que… Você estivesse certa”. Conforme ele falava eu andava em direção ao dragão; com o pico de adrenalina cessando eu percebi algo em seu rosto.
Então eu corri
e, talez
por sorte, talvez
por intuição, eu
consegui sair da
taiga e encontrei as
montanhas para onde
estávamos indo e,
chegando lá, a Srta. não vai acre
ditar, eu encontrei Thymor-”
E conforme as palavras de Harry desvaneciam da minha audição, o rosto do dragão se aproximava da minha mão, que eu sequer havia percebido que eu tinha estendido. Eu toquei no seu focinho, sentindo o seu calor; era uma criatura endotérmica.
De um lado, ele possuía um olho dourado brilhante, do outro, uma enorme cicatriz, cegando seu olho direito.